O som que ninguém ouve: a realidade silenciosa da perda auditiva em Portugal

O som que ninguém ouve: a realidade silenciosa da perda auditiva em Portugal
Num café de Lisboa, enquanto o ruído da cidade invade o espaço, Maria, 68 anos, ajusta discretamente o seu aparelho auditivo. 'As pessoas pensam que é apenas não ouvir bem', confessa, enquanto o café arrefece à sua frente. 'É como viver num filme mudo onde todos à tua volta têm legendas que tu não consegues ler.' A sua história não é única - em Portugal, estima-se que mais de 600 mil pessoas sofram de perda auditiva significativa, mas apenas um terço procura ajuda.

Esta realidade silenciosa esconde-se por trás de números que falam mais alto do que os sons que deixam de ser ouvidos. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, a perda auditiva é a terceira condição crónica mais comum em adultos, atrás apenas da artrite e da hipertensão. Em Portugal, o cenário é particularmente preocupante entre os mais jovens, com estudos recentes a apontarem para um aumento alarmante de problemas auditivos na faixa etária dos 18 aos 35 anos.

O que está a mudar? A resposta pode estar nos nossos bolsos. Os smartphones, companheiros constantes da vida moderna, tornaram-se fontes de ruído contínuo. 'Vemos cada vez mais jovens com zumbidos persistentes e perda auditiva precoce', explica o Dr. António Silva, otorrinolaringologista no Hospital de Santa Maria. 'O problema é que muitos ignoram os primeiros sinais - dificuldade em seguir conversas em ambientes ruidosos, necessidade de aumentar o volume da televisão, sensação de ouvidos tapados.'

Mas a perda auditiva vai muito além do físico. Num estudo realizado pela Universidade do Porto, investigadores descobriram que pessoas com deficiência auditiva não tratada têm 50% mais probabilidade de desenvolver depressão. 'O isolamento social é quase inevitável', revela a psicóloga Carla Mendes, que trabalha com grupos de apoio. 'Imagine não conseguir participar na conversa à mesa de jantar em família, ou ter de pedir constantemente que repitam o que disseram. As pessoas acabam por se retirar.'

A tecnologia, porém, está a reescrever esta narrativa. Os aparelhos auditivos modernos são pequenas maravilhas da engenharia - alguns tão discretos que cabem completamente dentro do canal auditivo, outros com capacidades que parecem saídas de ficção científica. 'Temos aparelhos que se conectam ao telemóvel, permitem ouvir música em streaming, e até têm geolocalização para ajustar automaticamente as configurações conforme o ambiente', descreve o engenheiro Pedro Costa, especialista em tecnologia auditiva.

Mas há um obstáculo que persiste: o estigma. 'Muitos associam aparelhos auditivos à velhice, à incapacidade', observa Maria, que esperou dez anos antes de procurar ajuda. 'O que não percebem é que hoje em dia, os jovens usam auriculares o dia todo - qual é a diferença?' A sua pergunta ecoa um movimento crescente de normalização, com marcas a desenvolver designs que mais parecem acessórios de moda do que dispositivos médicos.

O custo continua a ser outra barreira significativa. Enquanto em países como a Alemanha ou a Dinamarca os aparelhos auditivos são amplamente subsidiados pelo Estado, em Portugal muitos dependem do seu poder de compra. 'Um bom aparelho pode custar entre 1.500 a 3.000 euros por ouvido', explica Sofia Rodrigues, responsável por uma clínica auditiva no Porto. 'E não é um investimento único - requer manutenção, ajustes, e eventual substituição.'

No entanto, especialistas alertam: adiar a solução tem um preço mais alto. 'A perda auditiva não tratada acelera o declínio cognitivo', adverte o neurologista Rui Carvalho. 'O cérebro precisa de estímulo auditivo para se manter ativo. Quando esse estímulo desaparece, as conexões neuronais enfraquecem.'

O futuro, contudo, traz esperança. Investigadores portugueses estão na vanguarda de novas soluções, desde implantes cocleares mais eficientes até terapias genéticas que poderão regenerar células ciliadas danificadas. 'Estamos a poucos anos de tratamentos que poderão reverter certos tipos de perda auditiva', antevê a investigadora Inês Oliveira, do Instituto de Biologia Molecular.

Enquanto isso, nas ruas de Portugal, uma revolução silenciosa está em curso. Grupos de apoio multiplicam-se, campanhas de sensibilização ganham voz, e cada vez mais pessoas decidem que ouvir bem não é um luxo, mas um direito. Como diz Maria, enquanto se levanta do café: 'Recuperar a audição não foi apenas voltar a ouvir os pássaros. Foi voltar a pertencer ao mundo.'

O desafio agora é garantir que esta mensagem seja ouvida por todos - especialmente por aqueles que ainda vivem no silêncio.

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