Num café de Lisboa, um grupo de amigos ri-se de uma piada que um deles não ouviu. Na linha 2 do metro, um jovem aumenta o volume dos auriculares até níveis perigosos, inconsciente do risco. No consultório de um otorrinolaringologista, uma mulher de 45 anos descobre que tem perda auditiva precoce e pergunta: "Mas como é possível? Eu nem notei." Estas não são cenas isoladas - são sintomas de uma epidemia silenciosa que está a redefinir a nossa relação com o som.
A perda auditiva deixou de ser um problema exclusivo da terceira idade. Dados recentes mostram que portugueses cada vez mais jovens apresentam sinais de deterioração auditiva, muitos antes dos 30 anos. O culpado? Um cocktail tóxico de poluição sonora urbana, hábitos de escuta inseguros e a falsa sensação de segurança que os dispositivos modernos nos dão. "Temos uma geração que cresceu com auriculares colados aos ouvidos desde a infância," explica o Dr. Miguel Santos, especialista em audiologia. "O problema é que o dano é cumulativo e irreversível - e quando notam, já é tarde."
Mas há mais nesta história do que números e diagnósticos. A perda auditiva está a criar novas dinâmicas sociais invisíveis. Em reuniões familiares, quem sofre de problemas auditivos tende a isolar-se, fingindo que acompanha conversas que não ouve completamente. No trabalho, colaboradores com dificuldades auditivas não diagnosticadas são frequentemente mal interpretados como distraídos ou pouco interessados. "Recebo pacientes que chegam ao consultório depois de anos de frustração," conta a Dra. Ana Lopes. "Muitos desenvolveram ansiedade social sem perceber que a origem era auditiva."
A tecnologia, que em parte criou o problema, também oferece soluções revolucionárias. Os aparelhos auditivos modernes são maravilhas da microengenharia - dispositivos quase invisíveis que se conectam a smartphones, filtram ruído de fundo e até traduzem idiomas em tempo real. Mas aqui surge outro paradoxo: enquanto os jovens aceitam gadgets de todos os tipos, ainda existe um estigma social enorme em relação aos aparelhos auditivos. "As pessoas associam-nos à velhice e à incapacidade," diz Ricardo Mendes, que usa aparelhos desde os 28 anos. "Mas para mim, são como óculos para os ouvidos - uma ferramenta que me devolveu a vida social."
O silêncio tem custos económicos surpreendentes. Estudos europeus indicam que a perda auditiva não tratada custa milhares de milhões em produtividade perdida, acidentes de trabalho e despesas de saúde. Em Portugal, onde o rastreio auditivo não é sistemático, muitos casos só são detetados quando já causaram danos significativos na qualidade de vida. "Investimos em check-ups dentários e visuais, mas ignoramos completamente a saúde auditiva," critica Sofia Martins, presidente de uma associação de apoio a pessoas com deficiência auditiva.
Nas escolas, a situação é particularmente preocupante. Salas de aula barulhentas prejudicam não só alunos com problemas auditivos diagnosticados, mas também todos os outros. A aprendizagem em ambientes acusticamente pobres está ligada a piores resultados académicos e maior fadiga mental. "Um aluno que não ouve bem não é apenas um aluno que perde informação," explica uma professora do ensino básico. "É um aluno que se cansa mais rápido, que se distrai mais facilmente e que pode desenvolver problemas de comportamento."
Mas há esperança no horizonte. Movimentos de consciencialização estão a ganhar força, especialmente entre millennials e geração Z que valorizam o "self-care" auditivo. Apps que monitorizam níveis de exposição sonora, concertos com zonas de silêncio relativo, e até bares com design acústico pensado estão a aparecer. "Estamos a assistir a uma mud cultural," entusiasma-se Marco Tavares, fundador de uma startup de tecnologia auditiva. "As pessoas começam a ver os ouvidos não como órgãos passivos, mas como sentidos que precisam de cuidado ativo."
O futuro do som pode ser mais silencioso - e mais rico. Cidades que investem em barreiras acústicas, empregadores que oferecem rastreios auditivos, arquitetos que pensam o som desde a primeira planta. E cidadãos que aprendem a proteger a sua audição como protegem a visão com óculos de sol. Porque no fim, a questão não é apenas ouvir melhor - é viver melhor. Num mundo cada vez mais barulhento, talvez a maior revolução seja redescobrir o valor do silêncio e do som com qualidade.
A próxima vez que ajustar o volume do seu dispositivo, lembre-se: está a escrever a história auditiva do seu futuro. E essa história merece um final feliz - com todos os diálogos, risadas e músicas perfeitamente audíveis.
O som que ninguém ouve: como a perda auditiva silenciosa está a moldar a nossa sociedade