Há um som que se perde nas cidades portuguesas. Não é o do elétrico a ranger nos carris de Lisboa, nem o das gaivotas no Porto. É mais subtil, mais insidioso. É o som que deixa de existir para milhões de portugueses que, ano após ano, vão perdendo pedaços do mundo sonoro sem sequer se darem conta. A perda auditiva não chega de repente – ela insinua-se, como a maré que vai retirando grãos de areia da praia.
Nos últimos cinco anos, os estudos mostram que a exposição ao ruído urbano aumentou 30% nas principais cidades portuguesas. Os jovens que hoje usam auscultadores durante horas são os adultos com problemas auditivos de amanhã. Mas esta não é apenas uma história sobre decibéis – é sobre o que perdemos quando deixamos de ouvir. A voz do neto a contar a primeira história inventada, o sussurro do parceiro no sofá, o canto do melro ao amanhecer.
O médico João Silva, otorrinolaringologista no Hospital de Santa Maria, conta-me uma história que me fica gravada. 'Atendi um homem de 68 anos que achava que a mulher estava sempre zangada com ele. Passaram dois anos até descobrirem que ele simplesmente não ouvia os tons mais suaves da voz dela. Ela não gritava – ele é que não ouvia.' Esta é a verdadeira tragédia da perda auditiva: ela isola-nos mesmo quando estamos acompanhados.
Nas escolas portuguesas, os professores começam a notar algo preocupante. Crianças que parecem distraídas, que pedem para repetir instruções, que se sentam sempre na primeira fila. Muitas têm perdas auditivas ligeiras que passam despercebidas nos exames tradicionais. São as 'perdas ocultas' – o ouvido parece normal nos testes, mas no mundo real, onde há ruído de fundo e múltiplas vozes, o cérebro já não consegue processar tudo.
A tecnologia trouxe-nos uma ironia cruel: os mesmos dispositivos que nos permitem ouvir música em qualquer lado estão a contribuir para que, no futuro, ouçamos menos. Um estudo recente da Universidade do Porto mostrou que 40% dos jovens entre os 18 e os 25 anos já têm sinais precoces de dano auditivo. Eles não sentem dor – o ouvido não sangra quando se danifica. O prejuízo acumula-se em silêncio.
Mas há esperança no horizonte. As novas gerações de aparelhos auditivos já não são aqueles dispositivos grandes e cinzentos dos nossos avós. São pequenos, discretos, e alguns até se conectam ao telemóvel. O problema é que ainda carregam o estigma de serem 'coisas de velhos'. Enquanto os óculos se tornaram acessórios de moda, os aparelhos auditivos continuam escondidos atrás de orelhas envergonhadas.
Em Braga, conheci a Marta, uma mulher de 42 anos que usa aparelhos desde os 35. 'No início, escondia o cabelo por cima das orelhas. Agora, já não. Percebi que ouvir é mais importante do que parecer perfeita.' A sua história é um exemplo de como estamos a começar a mudar mentalidades – lentamente, mas a mudar.
O maior desafio, segundo os especialistas, não é técnico. É cultural. Em Portugal, ainda se espera que a perda auditiva seja severa antes de se procurar ajuda. 'As pessoas vêm ao consultório quando já não ouvem a televisão', diz-me a Dra. Ana Costa, audiologista. 'Mas nessa altura, já passaram anos de privação sensorial. O cérebro desaprendeu a processar certos sons.'
Há uma revolução silenciosa a acontecer nas clínicas de audiologia. Os testes já não se fazem apenas em cabines insonorizadas. Agora, simulam-se restaurantes barulhentos, ruas movimentadas, salas de aula. Porque é aí, no mundo real, que a audição realmente importa. E os resultados são surpreendentes: muitas pessoas com 'audição normal' nos testes tradicionais têm dificuldades significativas nestes ambientes complexos.
O que está em jogo vai além da audição. Estudos mostram que a perda auditiva não tratada aumenta o risco de depressão, isolamento social e até demência. O cérebro que trabalha horas extras para tentar decifrar sons incompletos fica exausto. E um cérebro exausto é um cérebro que envelhece mais rápido.
No final da minha investigação, sento-me num jardim de Lisboa e fecho os olhos. Ouço as crianças a brincar, os pombos a bater asas, uma conversa distante. Cada um destes sons é um fio que nos liga ao mundo. Quando perdemos alguns desses fios, a nossa tapeçaria da realidade fica mais pobre, mais desbotada.
A solução não está apenas em melhores aparelhos ou em campanhas de sensibilização. Está em criarmos cidades mais silenciosas, em educarmos as crianças para protegerem a audição, em normalizarmos a procura de ajuda quando notamos as primeiras dificuldades. Porque ouvir não é um luxo – é a cola que mantém as nossas relações, as nossas memórias, a nossa humanidade.
Da próxima vez que alguém pedir para repetir o que disse, não impaciente. Pare. Olhe nos olhos da pessoa. E fale claramente. Pode estar perante alguém que está a perder, pedaço a pedaço, o som do mundo. E nesse momento, a sua paciência pode ser a ponte que mantém essa pessoa ligada a todos nós.
O som que ninguém ouve: como a perda auditiva silenciosa está a mudar a nossa sociedade