O som que nos escapa: uma investigação sobre a perda auditiva não diagnosticada em Portugal

O som que nos escapa: uma investigação sobre a perda auditiva não diagnosticada em Portugal
Num café movimentado de Lisboa, Maria, 58 anos, inclina-se para a frente, o rosto contraído num esforço visível. 'Desculpe, pode repetir?', pede, pela terceira vez. A conversa flui à sua volta, mas para ela, as palavras chegam distorcidas, como se falassem através de um vidro espesso. Esta cena, que muitos consideram normal no envelhecimento, esconde uma epidemia silenciosa: a perda auditiva não diagnosticada que afeta milhares de portugueses.

Durante meses, percorri consultórios, associações de doentes e lares de idosos, descobrindo que o problema vai muito além dos ouvidos. É uma questão de saúde pública, isolamento social e até de segurança. 'Muitos acidentes domésticos acontecem porque as pessoas não ouvem o alarme do fogão ou o choro dos netos', revela-me o Dr. António Silva, otorrinolaringologista com 30 anos de experiência. Os números são alarmantes: estima-se que 40% dos portugueses acima dos 50 anos tenham perda auditiva significativa, mas apenas 15% usam aparelhos auditivos.

O que descobri vai chocar até os mais desconfiados. Existe um ciclo vicioso perfeito: o estigma social leva à negação, a negação ao adiamento do diagnóstico, e o adiamento ao agravamento do problema. 'As pessoas associam os aparelhos à velhice, como se fossem uma bandeira branca da derrota', confidencia-me Sofia, 62 anos, que só procurou ajuda após cair numa escada por não ouvir um aviso. Nas zonas rurais, a situação é ainda mais grave, com acesso limitado a especialistas e informação escassa.

Mas há luz no fim deste túnel silencioso. A tecnologia moderna trouxe soluções discretas e eficazes que ninguém suspeitaria. Conheci aparelhos que se conectam ao telemóvel, filtram ruído de fundo em restaurantes e até traduzem idiomas em tempo real. 'É como ter superpoderes', brinca Carlos, 70 anos, mostrando-me o dispositivo minúsculo atrás da orelha. O problema? O preço proibitivo para muitas pensões e a falta de comparticipação adequada do SNS.

Aqui reside a verdade mais incómoda da minha investigação: estamos a criar duas classes de cidadãos - os que ouvem e os que vivem num mundo cada vez mais silencioso. Nas escolas, crianças com problemas auditivos não diagnosticados são rotuladas como distraídas ou com dificuldades de aprendizagem. Nos locais de trabalho, adultos afastam-se de reuniões importantes, prejudicando carreiras inteiras.

O mais surpreendente foi descobrir que a solução começa muito antes do consultório médico. A poluição sonora nas cidades, os fones com volume excessivo, os ambientes laborais ruidosos sem proteção adequada - tudo contribui para esta 'pandemia auditiva'. 'Estamos a ensurdecer uma geração inteira', alerta a Dra. Isabel Costa, que lidera um estudo pioneiro sobre jovens e saúde auditiva.

No final da minha investigação, encontrei histórias de resiliência que inspiram esperança. Como a de Joaquim, 78 anos, que após colocar o primeiro aparelho disse: 'Voltei a ouvir os pássaros que não ouvia há dez anos'. Ou a campanha 'Ouve Portugal', que leva rastreios gratuitos a aldeias remotas. Estas iniciativas provam que, quando damos voz ao silêncio, criamos comunidades mais inclusivas e saudáveis.

O desafio que deixamos é simples: quando foi a última vez que prestou atenção ao que ouve - ou ao que já não ouve? Num mundo cada vez mais barulhento, preservar a audição pode ser o ato mais revolucionário de autocuidado. E começa com um gesto tão simples quanto honesto: admitir que, talvez, não estejamos a ouvir tão bem quanto pensamos.

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