O som que nos escapa: uma investigação sobre a perda auditiva silenciosa em Portugal

O som que nos escapa: uma investigação sobre a perda auditiva silenciosa em Portugal
Há um som que se perde nas ruas de Lisboa, nos campos alentejanos, nos escritórios do Porto. Não é o som dos elétricos a chiar nos trilhos, nem o do fado a ecoar nas vielas da Mouraria. É o som que deixa de chegar aos ouvidos de milhares de portugueses, num processo tão gradual que muitos nem sequer notam quando começou.

Esta investigação levou-me a percorrer consultórios de otorrinolaringologia, centros de audiologia e lares de idosos. O que descobri vai além dos números frios das estatísticas: estamos perante uma epidemia silenciosa que afecta relações familiares, carreiras profissionais e, acima de tudo, a qualidade de vida de quem dela sofre.

O Dr. Miguel Santos, otorrinolaringologista com 30 anos de experiência, recebe-me no seu consultório no Hospital de Santa Maria. "As pessoas chegam aqui quando já perderam 30, 40% da audição", explica, enquanto mostra um audiograma. "É como se esperassem que o rio seque completamente antes de procurarem água."

Os números são alarmantes: segundo dados da Direcção-Geral da Saúde, cerca de 30% dos portugueses com mais de 50 anos têm perda auditiva significativa. Entre os maiores de 70, este número sobe para 60%. Mas o que mais preocupa os especialistas é o aumento de casos entre jovens, directamente ligado ao uso excessivo de auriculares e à exposição a ambientes ruidosos.

Ana, uma professora de 42 anos que conheci numa clínica de audiologia no Porto, partilha a sua experiência. "Comecei a notar que os meus alunos falavam cada vez mais baixo", conta, com um sorriso triste. "Na verdade, era eu que os ouvia cada vez menos. Custou-me admitir, mas quando comecei a ter dificuldades nas reuniões de pais, percebi que tinha de fazer alguma coisa."

O estigma associado aos aparelhos auditivos continua a ser uma barreira significativa. "As pessoas ainda pensam que são aqueles aparelhos grandes e feios dos avós", diz Sofia Rodrigues, técnica de audiologia. "A tecnologia evoluiu radicalmente. Hoje temos aparelhos do tamanho de uma ervilha, alguns até recarregáveis via Bluetooth."

Mas a tecnologia tem o seu preço. Um aparelho auditivo de gama média pode custar entre 1000 e 2500 euros, e a maioria dos portugueses precisa de dois. O Serviço Nacional de Saúde cobre parte destes custos, mas as listas de espera podem chegar a um ano. "É um ano de silêncio", comenta Maria João, 68 anos, que esperou nove meses pela sua prótese.

A prevenção é onde reside a maior esperança. Especialistas defendem que a educação auditiva deveria começar nas escolas, tal como a educação rodoviária ou alimentar. "Ensinamos as crianças a lavar os dentes, mas não as ensinamos a proteger os ouvidos", observa o Dr. Santos.

Nos locais de trabalho, a situação não é melhor. Apesar da legislação europeia que obriga à protecção auditiva em ambientes ruidosos, a fiscalização é insuficiente. Conheci operários da construção civil que trabalham há anos sem protecção adequada. "No início custa, mas depois habituamo-nos", diz-me um deles, mostrando-me os seus protectores auriculares que mal usa.

A revolução digital trouxe novas soluções. Aplicações móveis permitem agora fazer rastreios auditivos básicos em casa. Clínicas virtuais oferecem consultas online. E os próprios aparelhos auditivos tornaram-se dispositivos inteligentes, capazes de se ligar a telemóveis e televisões.

Mas a tecnologia mais avançada depara-se com um obstáculo cultural. "O português é desconfiado por natureza", explica Carlos Mendes, director de uma empresa de aparelhos auditivos. "Precisa de tocar, de experimentar, de estabelecer uma relação de confiança com quem vende. O online ainda não conquistou esta área."

Nas zonas rurais, o problema agrava-se. A falta de especialistas obriga as pessoas a deslocarem-se às cidades, muitas vezes abandonando o tratamento pela dificuldade das viagens. "Há idosos que deixam de ir às consultas porque os filhos trabalham e não os podem levar", conta uma assistente social de Beja.

O impacto social da perda auditiva é profundo. Estudos mostram que está directamente ligada à depressão, ao isolamento social e mesmo ao declínio cognitivo. "Quando deixamos de ouvir, deixamos de participar", explica uma psicóloga que acompanha idosos com problemas auditivos. "É uma porta que se fecha, e com ela vão-se fechando outras."

Mas há histórias de esperança. Como a do Sr. António, 75 anos, que voltou a jogar cartas no café da aldeia depois de colocar os aparelhos. "Pensei que já ninguém me queria ouvir", confessa. "Afinal, era eu que não os ouvia a eles."

O futuro passa pela combinação entre tecnologia acessível, educação precoce e desestigmatização. "Temos de normalizar os aparelhos auditivos como normalizámos os óculos", defende uma especialista em saúde pública. "Ninguém tem vergonha de usar óculos. Porque haveríamos de ter vergonha de ouvir melhor?"

Enquanto termino esta reportagem, lembro-me das palavras de uma idosa que conheci num centro de dia: "A vida tem sons que não podemos perder. O riso dos netos, o mar, a música. Perder estes sons é perder pedaços da vida." Talvez seja esta a mensagem mais importante: cuidar da audição é cuidar da nossa ligação com o mundo.

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