O mercado segurador português atravessa uma transformação silenciosa que poucos consumidores conseguem perceber. Enquanto as seguradoras apresentam números recorde de lucros, os portugueses continuam a pagar prémios cada vez mais elevados por coberturas que, na prática, se tornam mais limitadas. Esta investigação revela os bastidores de um setor que movimenta milhares de milhões de euros anualmente, mas que mantém práticas questionáveis longe dos olhos do público.
As apólices de seguros tornaram-se documentos cada vez mais complexos, repletos de cláusulas escritas em linguagem técnica que poucos entendem. "É como se fosse escrito em código", confessa Maria Silva, economista que estudou durante semanas o seu contrato de seguro multirriscos habitacional. "Só depois de consultar um advogado percebi que estava a pagar por coberturas que, na prática, não existiam devido às exclusões escondidas nas letras pequenas."
A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) tem vindo a receber um número crescente de reclamações relacionadas com a falta de transparência nas condições contratuais. Dados oficiais mostram que, apenas no primeiro semestre de 2023, foram registadas mais de 1.200 queixas relacionadas com a comunicação de produtos seguradores. O problema é particularmente grave nos seguros de saúde, onde os consumidores frequentemente descobrem que tratamentos específicos não estão cobertos apenas quando precisam deles.
Os seguros automóvel representam outro campo minado para os consumidores. Com a subida generalizada dos prémios justificada pelo aumento dos custos de reparação e dos sinistros, muitas seguradoras têm implementado sistemas de bonificação que, na prática, penalizam os condutores mais carenciados. "O sistema de classes de bonificação funciona como um círculo vicioso", explica João Martins, especialista em direito do seguro. "Quem tem menos recursos financeiros acaba por pagar mais pelo seguro, criando uma situação de desigualdade social."
A digitalização do setor trouxe novas oportunidades, mas também novos riscos. As insurtechs prometem revolucionar o mercado com preços mais baixos e processos simplificados, mas especialistas alertam para a falta de regulamentação adequada. Muitas destas startups operam em zonas cinzentas da legislação, oferecendo produtos que podem não cumprir com todas as exigências legais de proteção ao consumidor.
Os seguros de vida enfrentam os seus próprios desafios. Com o envelhecimento da população portuguesa, as seguradoras têm vindo a ajustar as suas políticas de subscrição, tornando mais difícil e caro obter cobertura para pessoas acima dos 60 anos. Esta situação coloca em risco milhares de famílias que dependem destes produtos para garantir a sua segurança financeira.
A situação é particularmente preocupante no que diz respeito aos seguros de crédito habitação. Muitos portugueses continuam a pagar prémios elevados por seguros de vida associados aos seus empréstimos, sem perceber que poderiam obter condições mais vantajosas no mercado livre. "Há uma falta de informação gritante sobre o direito de os consumidores escolherem livremente as suas seguradoras", denuncia Carla Mendes, presidente de uma associação de defesa do consumidor.
Os seguros agrícolas representam outro capítulo preocupante desta história. Com as alterações climáticas a aumentarem a frequência e intensidade de fenómenos meteorológicos extremos, os agricultores portugueses enfrentam dificuldades crescentes em obter coberturas adequadas a preços acessíveis. Muitos veem-se forçados a reduzir as suas atividades ou a assumir riscos que podem levar à ruína financeira.
A supervisão regulatória tem sido um ponto de controvérsia. Embora a ASF tenha aumentado a sua atividade inspectiva nos últimos anos, muitos especialistas consideram que a autoridade carece de meios suficientes para fiscalizar adequadamente todo o setor. "Há uma assimetria de poder evidente entre as grandes seguradoras e o regulador", afirma um ex-inspector que preferiu manter o anonimato.
O futuro do setor segurador em Portugal dependerá em grande medida da capacidade de os consumidores se organizarem e exigirem maior transparência. Associações de defesa do consumidor têm vindo a ganhar protagonismo, mas ainda enfrentam recursos limitados face aos gigantes do seguro. A educação financeira surge como uma ferramenta crucial para equilibrar esta relação de forças.
A tecnologia blockchain e os contratos inteligentes prometem trazer uma nova era de transparência ao setor, mas a sua implementação tem sido lenta. Enquanto isso, os consumidores continuam dependentes da boa-fé das seguradoras – uma confiança que, segundo os dados das reclamações, tem sido repetidamente quebrada.
A solução pode passar por uma maior intervenção do Estado, não apenas como regulador, mas também como promotor de seguros sociais que complementem a oferta privada. Países como a França e a Alemanha têm sistemas mistos que garantem cobertura básica a todos os cidadãos, independentemente da sua situação económica.
Enquanto estas questões não forem resolvidas, os consumidores portugueses continuarão a navegar num mercado opaco, onde o conhecimento é poder – e onde a falta de informação pode custar muito caro. A próxima vez que assinar uma apólice de seguro, lembre-se: o diabo está nos detalhes, e são precisamente esses detalhes que as seguradoras preferem manter nas sombras.
Seguros em Portugal: o que as seguradoras não querem que saibas sobre as apólices