A revolução energética que ninguém está a contar: como o solar está a mudar Portugal sem fazer barulho

A revolução energética que ninguém está a contar: como o solar está a mudar Portugal sem fazer barulho
Enquanto os holofotes mediáticos se concentram nas grandes centrais solares e nos megaprojetos anunciados com pompa e circunstância, uma revolução silenciosa está a acontecer nas coberturas, nos terrenos abandonados e até nos parques de estacionamento de Portugal. Esta é a história que os relatórios oficiais não contam - a do solar que cresce na sombra, transformando a paisagem energética do país de forma orgânica e, por vezes, surpreendentemente disruptiva.

Nas traseiras de uma antiga fábrica têxtil no Vale do Ave, encontrei o que poderia ser o futuro da energia em Portugal. Miguel Santos, um empresário de 42 anos que herdou o negócio da família, mostrou-me como transformou os telhados das naves industriais num parque solar que não só alimenta a sua produção como vende o excedente à rede. "Quando fechámos a linha de produção de têxteis, pensei que estava tudo perdido. Agora, produzo mais valor com o sol do que com as máquinas", confessa, com um sorriso que denota tanto alívio como incredulidade.

Esta não é uma história isolada. Percorrendo o país de norte a sul, encontrei dezenas de casos semelhantes - agricultores no Alentejo que complementam os rendimentos com parques solares nos terrenos menos férteis, condomínios em Lisboa que reduziram as despesas comuns em 60%, e até cemitérios que encontraram nos jazigos perpétuos uma oportunidade energética inesperada. O fenómeno é tão difundido que já tem um nome entre os especialistas: "solar de guerrilha".

O que torna esta revolução particularmente interessante é como ela desafia as narrativas tradicionais sobre a transição energética. Enquanto o debate público se concentra nos leilões de capacidade e nos grandes investidores internacionais, o verdadeiro motor da mudança está a ser a iniciativa individual e comunitária. "As pessoas descobriram que podem ser produtoras, não apenas consumidoras", explica Ana Lúcia Ferreira, investigadora do INEGI que tem acompanhado o fenómeno. "E isso está a criar uma dinâmica completamente nova no mercado."

Nos bastidores desta transformação, há uma teia complexa de fatores que a tornam possível. A queda brutal dos preços dos painéis solares - mais de 80% na última década - eliminou a principal barreira de entrada. As alterações legislativas que simplificaram o licenciamento para pequenas instalações criaram o enquadramento legal necessário. E, talvez o mais importante, surgiu uma nova geração de empresas especializadas que tornam o processo tão simples como comprar um electrodoméstico.

Mas esta história tem os seus antagonistas. As distribuidoras de energia tradicionais enfrentam um desafio existencial: como manter redes elétricas concebidas para fluxos unidirecionais quando milhares de pequenos produtores começam a injetar energia de forma imprevisível? "É como tentar gerir o trânsito numa cidade onde metade dos carros decide, de repente, andar na contramão", desabafa um técnico da E-Redes que preferiu não se identificar.

Os números, quando analisados com atenção, contam uma história fascinante. Enquanto a capacidade solar instalada através dos canais oficiais cresce a um ritmo impressionante, o segmento de auto-consumo e pequena produção está a expandir-se três vezes mais rápido. E o perfil dos "produtores-sombra" é surpreendentemente diversificado: desde reformados que querem reduzir a fatura da luz até startups tecnológicas que veem na energia uma nova fronteira de inovação.

No Algarve, encontrei um caso particularmente revelador. Um resort de luxo decidiu instalar painéis solares não apenas para reduzir custos, mas como elemento de marketing. "Os nossos clientes, especialmente os mais jovens, valorizam cada vez mais a sustentabilidade", explica o gerente. "O solar tornou-se um argumento de venda tão importante como a piscina ou o spa."

Esta dimensão social da energia solar é talvez o aspeto mais negligenciado da narrativa convencional. Nas periferias urbanas, assisti a como os projetos comunitários estão a fortalecer laços sociais e a criar novas formas de organização coletiva. "Começámos a juntar-nos para discutir a energia, e acabámos a resolver outros problemas do bairro", conta Maria João, coordenadora de um projeto em Odivelas.

O que o futuro reserva para esta revolução silenciosa? Os especialistas com quem falei apontam para três tendências principais: a integração com o armazenamento (as baterias estão a tornar-se cada vez mais acessíveis), a digitalização (com apps que permitem gerir a produção e consumo em tempo real) e, mais interessante, o surgimento de novos modelos de negócio baseados na partilha de energia entre vizinhos.

Há, no entanto, nuvens no horizonte. A saturação das redes em algumas zonas rurais já está a limitar novos projetos. A burocracia, apesar dos avanços, continua a ser um obstáculo significativo. E o risco de uma bolha especulativa no setor preocupa os observadores mais cautelosos.

Mas o que mais me impressionou, após semanas a percorrer o país à procura desta história, foi o contraste entre a narrativa oficial - focada em números, metas e megawatts - e a realidade no terreno, feita de pessoas comuns que encontraram no sol uma oportunidade de tomar o controlo do seu destino energético. Esta pode não ser a revolução que esperávamos, mas é certamente a que precisávamos - orgânica, descentralizada e, acima de tudo, genuinamente portuguesa.

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