Enquanto os holofotes mediáticos se concentram nos painéis solares que pontilham os telhados portugueses, uma revolução mais silenciosa — e potencialmente mais transformadora — está a ganhar forma nos bastidores da transição energética. O hidrogénio verde, produzido através da eletrólise da água usando eletricidade renovável, emerge não como uma mera alternativa, mas como a peça que faltava no puzzle da descarbonização. Portugal, com o seu excecional recurso solar e eólico, posiciona-se não como um mero espectador, mas como um potencial líder neste novo capítulo energético.
A ambição está traçada no Plano Nacional de Hidrogénio, que prevê a instalação de 2 a 2,5 GW de capacidade de eletrólise até 2030. Mas os números, por si só, contam apenas metade da história. A verdadeira narrativa desenrola-se nos terrenos industriais de Sines, onde projetos como o GreenH2Atlantic prometem transformar uma antiga central a carvão num hub de produção de hidrogénio limpo. É aqui que a poesia da sustentabilidade encontra a prosa da engenharia pesada, num esforço para descarbonizar setores difíceis de eletrificar, como a indústria química, a siderurgia ou o transporte marítimo de longo curso.
No entanto, o caminho está longe de ser linear. Os desafios são tão monumentais quanto a oportunidade. A produção de hidrogénio verde consome quantidades colossais de água doce — um recurso cada vez mais escasso num país familiarizado com a seca. A questão da água obriga a uma reflexão profunda: será ético desviar este recurso vital para a produção de energia, ou será a dessalinização, com os seus custos energéticos adicionais, a única solução sustentável? A resposta exigirá mais do que cálculos de engenharia; exigirá um debate público sério sobre prioridades nacionais.
O financiamento é outro nó górdio. Embora os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) tenham injetado um fôlego inicial, a escala de investimento necessária para criar uma economia do hidrogénio é de biliões, não de milhões. O setor privado observa com um misto de interesse e cautela, à espera de sinais claros de rentabilidade e de um quadro regulatório estável. A recente aprovação do primeiro leilão de hidrogénio renovável em Portugal é um passo na direção certa, mas o diabo, como sempre, está nos detalhes — nos preços de referência, nas garantias de origem e na complexa logística de transporte e armazenamento.
E depois há a questão da competitividade. Enquanto Portugal avança, outros países europeus, como a Alemanha e a Espanha, não estão parados. A Alemanha, em particular, já identificou Portugal como um parceiro estratégico para importar hidrogénio verde, levantando um dilema fundamental: devemos ser principalmente produtores para exportação, alimentando a indústria pesada alemã, ou devemos focar-nos primeiro no consumo interno, criando uma cadeia de valor nacional que vá da produção à utilização final? Esta não é apenas uma decisão económica; é uma escolha sobre soberania energética e modelo de desenvolvimento.
O potencial vai além da indústria. Imagine-se uma frota de autocarros urbanos movida a hidrogénio, emitindo apenas vapor de água, ou comboios regionais que deixam para trás o diesel sem depender de linhas elétricas caras. Estes projetos-piloto já não são ficção científica; estão a ser testados um pouco por toda a Europa. Em Portugal, a integração do hidrogénio na rede de gás natural, através de blending, oferece uma via para descarbonizar gradualmente o aquecimento doméstico e a cogeração, setores onde a eletrificação direta é complexa.
O que está em jogo, no fundo, é a capacidade de Portugal de passar de um importador de combustíveis fósseis para um exportador de energia limpa e de tecnologia associada. A aposta no hidrogénio verde não é um desvio da rota solar; é o seu complemento natural, uma forma de armazenar e valorizar o excesso de produção renovável em horas de pico. É a promessa de um sistema energético verdadeiramente circular e resiliente.
Contudo, o sucesso dependerá de uma visão que vá além dos ciclos políticos. Exigirá uma colaboração inédita entre o Estado, as empresas, a academia e a sociedade civil. Exigirá que se evitem os erros do passado, garantindo que os benefícios económicos são partilhados de forma justa e que os impactos ambientais são rigorosamente monitorizados. A revolução do hidrogénio verde está a começar. Cabe a Portugal decidir se será um líder ou um seguidor tardio. A janela de oportunidade está aberta, mas não ficará aberta para sempre.
A revolução silenciosa do hidrogénio verde: como Portugal pode liderar na Europa