O sol português brilha em média 300 dias por ano, mas a nossa relação com esta fonte de energia limpa continua marcada por contradições profundas. Enquanto os números oficiais celebram a crescente capacidade instalada de painéis solares, uma investigação mais aprofundada revela um cenário menos radiante: licenças que demoram anos a ser aprovadas, redes elétricas sobrecarregadas e um potencial que continua largamente por explorar.
Nas traseiras de uma fábrica no distrito de Santarém, encontro Miguel Silva, um empresário que espera há 18 meses pela autorização para instalar painéis solares no telhado do seu armazém. "Parece que estamos a pedir licença para construir uma central nuclear, não para colocar uns painéis que me poupariam 40% na fatura da eletricidade", desabafa, enquanto aponta para o telhado vazio. A sua história repete-se por todo o país, onde a burocracia continua a ser o maior obstáculo à revolução solar.
O paradoxo torna-se mais evidente quando analisamos os números: Portugal tem uma das radiações solares mais elevadas da Europa, mas ocupa apenas o 13º lugar em capacidade solar per capita. Enquanto a Alemanha, com muito menos sol, produz quase o triplo da energia solar que nós. A explicação pode estar no que os especialistas chamam de "inércia institucional" - um sistema desenhado para grandes projetos centralizados que não consegue adaptar-se à natureza distribuída da energia solar.
A rede elétrica nacional revela-se outra peça deste quebra-cabeças. Em dias de maior produção, especialmente na primavera, já se registam situações de curtailment - quando os operadores são obrigados a desligar painéis solares porque a rede não consegue absorver toda a energia produzida. É como ter uma torneira de ouro e fechá-la porque o balde já está cheio, enquanto há sede por todo o lado.
Nos bastidores do setor, ouvem-se histórias de produtores que recebem para não produzir, num sistema que penaliza o sucesso. "Investimos milhões em tecnologia de ponta para depois sermos pagos para ficar parados", confessa-me um gestor de uma central solar no Alentejo, que prefere não se identificar. O custo destas operações acaba por ser suportado por todos os consumidores através das tarifas de acesso às redes.
Mas há luz no fim do túnel. As comunidades de energia renovável começam a surgir como alternativa viável, permitindo que grupos de cidadãos ou empresas se unam para produzir e partilhar a sua própria energia. Em Évora, uma cooperativa formada por 50 famílias está a revolucionar o acesso à energia solar, contornando muitas das barreiras que travam os projetos individuais.
O armazém abandonado que visito na periferia da cidade transformou-se num exemplo do que é possível fazer quando a burocracia dá lugar à criatividade. Os painéis solares instalados no telhado não só alimentam as casas dos cooperantes como geram receitas através da venda do excedente à rede. "É a democracia energética na prática", explica-me Maria João, uma das fundadoras do projeto.
A indústria nacional de componentes solares vive o seu próprio drama. Enquanto a procura por painéis dispara, a maioria do equipamento continua a ser importado da China. As poucas fábricas portuguesas que sobreviveram à concorrência asiática lutam por encontrar o seu espaço num mercado globalizado. Visito uma delas no Porto, onde os trabalhadores montam painéis com tecnologia desenvolvida localmente, mas que representam apenas uma fração mínima do mercado nacional.
O diretor da fábrica, que me recebe com orgulho mas também com preocupação, mostra-me os números: "Conseguimos competir em qualidade, mas o preço dos painéis chineses é impossível de bater. Precisávamos de políticas que valorizassem não só a produção de energia limpa, mas também a indústria nacional que a suporta."
Nos corredores do poder, a conversa é outra. Os planos nacionais falam em duplicar a capacidade solar até 2030, mas os mecanismos para lá chegar continuam nebulosos. Encontro um técnico superior do ministério que, sob anonimato, me confessa: "Temos metas ambiciosas no papel, mas falta a máquina administrativa para as concretizar. É como querer ganhar o Tour de France com uma bicicleta de praia."
A revolução solar portuguesa precisa de mais do que painéis e sol. Precisa de uma reforma profunda dos sistemas de licenciamento, de investimento nas redes inteligentes e de políticas que incentivem não só a instalação, mas também a produção local de equipamentos. O potencial está lá, brilhando todos os dias sobre nós. Resta saber se teremos a inteligência para o aproveitar.
Enquanto o sol se põe sobre Lisboa, olho para os telhados da cidade e imagino o que poderiam ser se estivessem cobertos de painéis solares. Não é uma questão técnica ou económica - é sobretudo uma questão de vontade política e de visão. O futuro energético de Portugal está literalmente ao nosso alcance, basta estender a mão e aproveitar a luz que nos é oferecida todos os dias.
O paradoxo solar: como Portugal está a desperdiçar o seu maior recurso energético
