O paradoxo solar: como Portugal produz energia limpa mas continua dependente do gás

O paradoxo solar: como Portugal produz energia limpa mas continua dependente do gás
Num país banhado por mais de 3.000 horas de sol por ano, a ironia é quase palpável. Portugal tornou-se um caso de estudo europeu na produção de energia solar, com megaparques fotovoltaicos a brotarem no Alentejo como flores do deserto após a chuva. No entanto, quando o sol se põe e as famílias ligam as luzes, o fantasma do gás natural ainda assombra as facturas de electricidade. Esta contradição revela uma história complexa de transição energética, onde os números brilhantes escondem vulnerabilidades estruturais.

Os dados oficiais mostram um crescimento exponencial: a capacidade solar instalada triplicou nos últimos três anos, com projectos como o da Iberdrola em Santiago do Cacém a produzirem energia suficiente para 430.000 lares. Mas aqui reside o primeiro paradoxo. Enquanto os painéis captam fotões durante o dia, o sistema nacional carece de soluções eficazes de armazenamento. As baterias de grande escala ainda são escassas, caras e tecnologicamente imaturas para sustentar a rede durante a noite ou em dias nublados.

A dependência do gás natural torna-se assim uma muleta tecnológica. As centrais de ciclo combinado, como a do Pego ou do Tapada do Outeiro, continuam a ser acionadas diariamente para compensar a intermitência solar. Segundo análises da REN, cerca de 30% da electricidade consumida após o pôr-do-sol ainda provém de combustíveis fósseis. Esta realidade coloca Portugal numa posição delicada perante as metas europeias de descarbonização, criando o que especialistas chamam de "transição a duas velocidades".

O problema não é apenas técnico, mas também geopolítico. A recente crise energética expôs as fragilidades da dependência do gás, com Portugal a importar GNL principalmente dos EUA e da Nigéria. Cada navio-metaneiro que atraca no porto de Sines representa não apenas uma factura milionária, mas também uma vulnerabilidade estratégica. Enquanto isso, os parques solares portugueses vendem parte da sua produção a preços reduzidos para a Europa, num esquema de exportação que beneficia os consumidores alemães ou franceses mais do que os portugueses.

A solução poderá estar debaixo dos nossos pés. Projectos pioneiros de hidrogénio verde, como o anunciado em Sines pela EDP e Galp, prometem usar o excesso de energia solar para produzir combustível limpo. Esta tecnologia, ainda em fase experimental, permitiria armazenar a energia do sol em forma química, disponível sob demanda. No entanto, os investimentos necessários ascendem a milhares de milhões, exigindo um compromisso político que transcenda ciclos eleitorais.

Outra frente de batalha desenrola-se nos telhados portugueses. O programa de autoconsumo residencial tem tido uma adesão surpreendente, com mais de 100.000 habitações já equipadas com painéis solares. Esta micro-revolução descentralizada desafia o modelo tradicional das grandes utilities, criando uma rede distribuída mais resiliente. Mas mesmo aqui existem obstáculos burocráticos: licenciamentos demorados, limitações na venda de excedentes à rede e falta de incentivos para sistemas com baterias domésticas.

O aspecto financeiro revela outro contraste curioso. Enquanto os grandes fundos de investimento internacionais competem por licitações solares, oferecendo preços recorde por megawatt, os consumidores finais continuam a pagar tarifas elevadas. Esta desconexão entre o custo de produção e o preço ao público expõe as ineficiências do mercado liberalizado, onde os intermediários capturam parte significativa da cadeia de valor.

O futuro poderá passar por uma reinvenção completa do conceito de central eléctrica. Em vez de megaparques isolados, especialistas defendem sistemas híbridos que combinem solar, eólico e armazenamento numa única infraestrutura. O Alentejo, com a sua vastidão e radiação solar excepcional, poderia transformar-se num laboratório vivo destas soluções integradas. Mas isso exigiria uma coordenação entre ministérios, autarquias e empresas que raramente se verifica na prática.

Enquanto Portugal se prepara para atingir 80% de electricidade renovável até 2026, o desafio não é apenas produzir mais energia limpa, mas criar um sistema que funcione 24 horas por dia, 365 dias por ano. A resposta poderá estar numa combinação inteligente de tecnologias: desde baterias de fluxo até à gestão activa da procura, passando por redes inteligentes que comuniquem com cada electrodoméstico.

O paradoxo solar português é, no fundo, um espelho das contradições da transição energética global. Mostra como é mais fácil construir painéis do que reinventar sistemas, como a tecnologia avança mais rápido que a regulamentação, e como a independência energética exige mais do que recursos naturais - exige visão, coragem e uma pitada de pragmatismo. O sol português continua a brilhar com intensidade; resta saber se conseguiremos capturar toda a sua luz, mesmo quando ele desaparece do céu.

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