O paradoxo solar: como Portugal se tornou líder europeu enquanto famílias enfrentam barreiras

O paradoxo solar: como Portugal se tornou líder europeu enquanto famílias enfrentam barreiras
Num país onde o sol brilha mais de 300 dias por ano, a energia solar deveria ser uma evidência. Contudo, Portugal vive um paradoxo fascinante: enquanto lidera os rankings europeus de capacidade instalada per capita, milhares de portugueses continuam à espera na fila para aceder a esta revolução energética. A história que se desenrola nos telhados e nos campos portugueses é mais complexa do que os números sugerem.

Nos últimos três anos, Portugal transformou-se num caso de estudo internacional. De acordo com dados da REN, a capacidade solar instalada quadruplicou, atingindo valores que colocam o país à frente de gigantes como a Alemanha e a França. Os megaparques solares no Alentejo tornaram-se paisagem comum, com painéis a estender-se até onde a vista alcança. Mas esta expansão vertiginosa esconde uma realidade menos glamorosa: a burocracia que trava o potencial dos pequenos produtores.

O verdadeiro drama desenrola-se nas secretarias das câmaras municipais e nas filas de espera da rede elétrica. Maria Santos, professora de 54 anos de Évora, espera há 14 meses pela licença para instalar painéis no telhado da sua moradia. "Parece ironia", conta, enquanto aponta para o sol que incide sobre a sua varanda. "Vivo na cidade mais soalheira da Europa e não consigo aproveitar esta riqueza." A sua história repete-se em dezenas de municípios, onde os processos licenciativos podem demorar mais do que a própria instalação.

A revolução solar portuguesa divide-se em duas velocidades. De um lado, os grandes projetos que beneficiam de procedimentos acelerados e investimento internacional. Do outro, as famílias e pequenas empresas que navegam num labirinto de requisitos e prazos. Esta dualidade está a criar uma nova geografia energética no país, onde o acesso à energia limpa depende mais da escala do que da localização geográfica.

Os especialistas alertam para o risco de criar "ilhas solares" - zonas onde a concentração de grandes parques solares contrasta com a escassez de microprodução. "Estamos a construir uma rede que privilegia o wholesale em detrimento do retail", explica João Pereira, investigador do INEGI. "Isto pode comprometer a tão desejada democratização energética."

A crise energética acelerou a procura, mas não resolveu os estrangulamentos. As empresas instaladoras vivem um boom de encomendas, mas enfrentam dificuldades em cumprir prazos devido à escassez de componentes e à lentidão dos processos administrativos. "Temos clientes que assinam contrato em janeiro e só conseguimos iniciar obras em setembro", confessa Ricardo Mendes, gestor de uma PME do setor.

O governo reconhece o problema e promete simplificar os procedimentos. O novo programa de apoio à autoprodução, anunciado no último Orçamento do Estado, prevê a criação de balcões únicos para licenciamento. Mas as medidas ainda não se materializaram no terreno, deixando muitos portugueses num limbo energético.

Enquanto isso, a indústria solar continua a inovar. As novas tecnologias de armazenamento e os painéis bifaciais estão a aumentar drasticamente a eficiência dos sistemas. Os parques solares flutuantes, como o que está a ser construído no Alqueva, mostram como Portugal está a explorar soluções criativas para maximizar o potencial solar.

O verdadeiro teste à revolução solar portuguesa não será técnico, mas social. Conseguirá o país garantir que esta transição energética beneficia todos os cidadãos, e não apenas os grandes investidores? A resposta pode definir não apenas o futuro energético de Portugal, mas o modelo de sociedade que queremos construir.

Os próximos meses serão decisivos. Com a Europa a acelerar a transição verde e os preços da energia a manterem-se voláteis, Portugal tem uma oportunidade histórica para se afirmar como laboratório de soluções energéticas. Mas para isso, terá de resolver o paradoxo que atualmente caracteriza o seu setor solar: muita luz, mas ainda muitas sombras.

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