Enquanto o governo celebra os números recordes da energia solar em Portugal, uma realidade paralela desenha-se nos campos e telhados do país. Mais de 12 mil pedidos de ligação à rede aguardam resposta, criando um cenário de dois velocidades no setor que mais cresce no panorama energético nacional.
A explosão solar portuguesa é inegável. Dados recentes mostram que a capacidade instalada triplicou nos últimos três anos, colocando o país no topo europeu de penetração solar per capita. Mas por trás dos megawatts celebrados em comunicados oficiais, esconde-se uma teia burocrática que trava o potencial de famílias e pequenas empresas.
O problema central reside na saturação das redes de distribuição, particularmente em zonas rurais onde o espaço para instalações fotovoltaicas é abundante. As redes elétricas, desenhadas para um modelo centralizado de produção, mostram-se incapazes de absorver a energia descentralizada que brota de milhares de pontos simultâneos.
"Temos clientes que aguardam há mais de dois anos por uma simples ligação de 3,6 kW", confessa-nos um instalador de Bragança que preferiu manter o anonimato. "Enquanto isso, os grandes projetos avançam a velocidade de cruzeiro, beneficiando de ligações dedicadas e prioridade na rede."
Esta disparidade levanta questões sobre a verdadeira democratização da energia solar. Os grandes parques solares, muitos com capital estrangeiro, dominam o leilão de capacidade enquanto o pequeno produtor enfrenta um muro de papelada e prazos indefinidos.
A E-Redes, responsável pela gestão da rede de distribuição, reconhece o problema mas aponta para constrangimentos técnicos genuínos. "Não se trata apenas de ligar um cabo", explica um engenheiro da empresa. "Cada nova ligação exige estudos de impacto na rede, reforços de infraestrutura e, em muitos casos, investimentos que demoram meses a concretizar."
O Ministério do Ambiente e Ação Climática promete simplificar processos através do programa Simplex+ Energia, mas as medidas concretas tardam a chegar ao terreno. Enquanto isso, os prazos de ligação variam entre seis meses e três anos, dependendo da região e da capacidade solicitada.
Esta situação paradoxal coloca Portugal numa encruzilhada energética. Por um lado, o país é elogiado internacionalmente pela sua transição verde acelerada. Por outro, corre o risco de criar um sistema a duas velocidades onde apenas os grandes players conseguem participar plenamente na revolução renovável.
Os especialistas alertam para o perigo de estrangular o potencial distribuído, justamente o modelo mais resiliente e democrático de produção energética. "Estamos a construir um sistema onde a energia solar se torna mais um negócio de grandes corporações do que uma verdadeira revolução cidadã", adverte Maria Santos, investigadora em políticas energéticas.
As soluções passam necessariamente por investimentos massivos na digitalização e automação das redes, tornando-as mais inteligentes e capazes de gerir fluxos bidirecionais. Tecnologias como baterias comunitárias e gestão inteligente de carga poderiam aliviar parte dos constrangimentos, mas exigem investimentos que ainda não chegaram à escala necessária.
Enquanto isso, milhares de portugueses veem os seus painéis solares a produzir energia que não conseguem injetar na rede, num paradoxo moderno onde a abundância convive com o desperdício forçado. O futuro solar de Portugal dependerá da capacidade de resolver este dilema entre macro e micro, entre o centralized e o distribuído, entre a estatística e a realidade no terreno.
O paradoxo solar: como Portugal se tornou líder europeu enquanto milhares aguardam ligação à rede
