Enquanto os holofotes internacionais se voltam para Portugal como exemplo de transição energética, uma realidade mais complexa se desenha nos corredores das autarquias e nos terrenos onde os projetos solares esperam por luz verde. O país que bate recordes de produção fotovoltaica enfrenta um labirinto burocrático que ameaça travar a revolução que tanto celebra.
Os números impressionam: Portugal atingiu 3,2 GW de capacidade solar instalada em 2023, um crescimento de 40% face ao ano anterior. Mas por trás dessas estatísticas brilhantes, centenas de megawatts permanecem engavetados em processos de licenciamento que se arrastam por meses, quando não anos. A contradição é evidente - somos campeões na produção, mas amadores na agilização.
Nas regiões do Alentejo e Algarve, onde o sol é mais generoso, os investidores contam histórias de esperas intermináveis. "Temos um projeto de 50 MW pronto desde 2021, mas ainda aguardamos a declaração de utilidade pública", confessa-nos um promotor que preferiu manter o anonimato. "Enquanto isso, perdemos oportunidades de financiamento e vemos os custos subirem."
O problema não está na falta de vontade política - o Plano Nacional de Energia e Clima estabelece metas ambiciosas - mas na desconexão entre as estratégias nacionais e a capacidade de implementação local. As câmaras municipais, sobrecarregadas com processos e falta de técnicos especializados, tornam-se gargalos involuntários na corrida pela descarbonização.
A tecnologia, ironicamente, poderia ser parte da solução. Sistemas de georreferenciação automatizada e plataformas digitais para tramitação de processos existem, mas sua implementação é desigual entre municípios. Enquanto algumas autarquias já operam com processos 100% digitais, outras mantêm arquivos físicos que viajam entre departamentos em pastas de cartolina.
Os impactos vão além do setor energético. A lentidão nos licenciamentos afeta a competitividade das empresas portuguesas, que pagam entre 15% a 20% mais pela eletricidade do que seus concorrentes europeus. E o cidadão comum, que vê nas contas da luz um peso cada vez maior no orçamento familiar, questiona-se sobre os benefícios desta suposta revolução solar.
Mas há luz no fim do túnel. O programa Simplex+ pretende desburocratizar 70% dos processos de licenciamento até 2025, com foco específico nos projetos de energias renováveis. E algumas autarquias já mostram que é possível fazer diferente - o município de Ourique reduziu o tempo médio de licenciamento de 18 para 6 meses através de uma equipa dedicada e processos simplificados.
O setor privado também se adapta. Desenvolvedores estão criando parcerias com universidades para formar técnicos especializados e investindo em software de gestão de projetos que antecipa potenciais obstáculos no licenciamento. "Aprendemos que mais importante do que ter o melhor projeto técnico é entender a máquina administrativa", explica uma gestora de projetos com experiência em três continentes.
Os desafios não param na burocracia. A integração da energia solar na rede elétrica nacional exige investimentos em infraestrutura que ainda não acompanharam o crescimento explosivo da produção. As linhas de transporte estão sobrecarregadas em algumas regiões, obrigando ao corte temporário de produtores solares em horas de pico.
E há a questão do armazenamento - como garantir que a energia produzida ao meio-dia esteja disponível ao jantar? As baterias em grande escala ainda são caras, e as soluções de hidrogénio verde, embora promissoras, estão numa fase embrionária. Portugal investe em investigação, mas o tempo urge.
O consumidor final começa a perceber que a transição energética não é apenas uma questão de painéis solares nos telhados. É todo um ecossistema que precisa evoluir - desde a produção até à distribuição, passando pela regulação e pela formação de profissionais. E talvez seja aí que reside a maior oportunidade: criar uma indústria nacional em torno da energia solar, exportando não apenas eletricidade, mas conhecimento e tecnologia.
Enquanto isso, nos campos alentejanos, os painéis continuam a multiplicar-se sob um sol que não conhece burocracias. A natureza cumpre o seu papel com precisão matemática. Cabe agora aos humanos acompanhar o ritmo, desfazendo os nós que nós mesmos criamos. O futuro energético de Portugal depende menos da quantidade de sol que temos, e mais da nossa capacidade de remover obstáculos à sua aproveitamento.
O paradoxo solar: Portugal brilha no mundo mas esbarra na burocracia doméstica
