Há uma ironia que persegue Portugal como uma sombra teimosa. Enquanto o sol brilha implacável sobre o Alentejo, transformando vastas planícies em fornos naturais capazes de alimentar meio país, as contas de luz continuam a chegar com valores que fazem suar até os mais estoicos. Esta contradição não é apenas meteorológica - é política, económica e, acima de tudo, um caso de estudo sobre como um país pode ter tudo para liderar uma revolução energética e, ainda assim, ficar preso na dependência de combustíveis fósseis.
A verdade é que Portugal tem condições solares que fariam qualquer engenheiro alemão chorar de inveja. Enquanto a Alemanha, com seus céus frequentemente nublados, se tornou uma potência solar europeia através de políticas agressivas e investimento maciço, nós continuamos a debater-nos com burocracia e interesses instalados. Os números não mentem: segundo dados da Direção-Geral de Energia e Geologia, apenas 7% da nossa eletricidade vem do sol, quando poderíamos facilmente ultrapassar os 30%.
O problema começa nos municípios, onde os processos de licenciamento para parques solares podem demorar mais de dois anos. Enquanto isso, os investidores esfregam as mãos com os preços recorde do gás natural, e os cidadãos pagam a fatura literalmente. A recente crise energética expôs esta vulnerabilidade de forma crua: quando a Rússia aperta a torneira do gás, Portugal treme, apesar de ter uma fonte de energia gratuita e infinita a brilhar sobre as nossas cabeças.
Mas há luz no fim do túnel, e não vem de uma central a carvão. As comunidades energéticas estão a florescer em aldeias do interior, onde os habitantes se uniram para instalar painéis solares comunitários. Em Monsaraz, por exemplo, um grupo de 50 famílias criou a sua própria mini-rede, reduzindo as faturas de energia em 60% e injetando o excedente na rede nacional. São histórias como estas que mostram que a revolução pode começar de baixo para cima.
O governo tentou acelerar o processo com o programa 'RepowerEU', mas os resultados têm sido modestos. Enquanto os prazos para novas centrais solares se arrastam, continuamos a importar gás liquefeito dos Estados Unidos a preços exorbitantes. É como ter uma mina de ouro no quintal e continuar a comprar joias em prestações.
A indústria nacional também está a acordar para esta realidade. Grandes empresas como a EDP e a Galp estão a investir milhões em projetos solares, mas a escala ainda é insuficiente para mudar o paradigma. O verdadeiro potencial está nos telhados das nossas casas, fábricas e supermercados - espaços subutilizados que poderiam gerar energia suficiente para reduzir drasticamente a nossa dependência externa.
Os obstáculos técnicos existem, é verdade. A intermitência da energia solar requer sistemas de armazenamento eficientes, e as redes de distribuição precisam de modernização. Mas estas não são barreiras intransponíveis - são desafios de engenharia que outros países já resolveram. O que nos falta não é tecnologia, mas vontade política e visão de longo prazo.
Enquanto escrevo estas linhas, o sol bate na minha janela de Lisboa. É difícil não sentir uma ponta de frustração ao saber que esta energia está a ser desperdiçada, enquanto pagamos preços absurdos por combustíveis que poluem o ar que respiramos. A transição energética não é apenas uma questão ambiental - é económica, social e, cada vez mais, uma questão de soberania nacional.
O futuro pode ser radiante, mas só se tivermos a coragem de olhar para o sol de frente. As soluções existem, os recursos estão disponíveis, e o tempo de agir é agora. Antes que o próximo inverno chegue e nos lembre, mais uma vez, do preço da nossa dependência.
O paradoxo solar português: como um país com 300 dias de sol por ano ainda depende do gás