O sol que não aquece: como os burocratas estão a estrangular a revolução solar portuguesa

O sol que não aquece: como os burocratas estão a estrangular a revolução solar portuguesa
Há uma revolução silenciosa a acontecer nos telhados de Portugal, mas nas secretarias do Estado, o silêncio é ensurdecedor. Enquanto os portugueses instalam painéis solares a um ritmo recorde, os processos de licenciamento continuam presos numa teia burocrática que parece desenhada para desencorajar até os mais determinados. A energia solar poderia ser a nossa independência energética, mas transformou-se num labirinto de papeladas.

Nos últimos dois anos, o número de pedidos de licenciamento para microprodução solar aumentou 300%, segundo dados da Direção-Geral de Energia e Geologia. No entanto, o tempo médio de aprovação mantém-se nos 180 dias, quando a lei prevê 60. Enquanto isso, em Espanha, os mesmos processos demoram 30 dias. A diferença não é técnica, é burocrática.

O problema começa na fragmentação das competências. Uma simples instalação residencial pode precisar de aprovações da câmara municipal, da empresa distribuidora de energia, da Agência Portuguesa do Ambiente e até da autoridade aeronáutica, se estiver perto de um aeroporto. Cada entidade tem os seus prazos, os seus formulários, as suas exigências. O resultado é um sistema que parece concebido para falhar.

Mas há luz ao fundo do túnel, mesmo que ténue. Alguns municípios, como Cascais e Guimarães, criaram gabinetes de apoio específicos para processos de energia renovável. Os resultados são impressionantes: redução de 70% no tempo de licenciamento. A pergunta que se impõe é: porque não se generaliza esta boa prática?

O custo da burocracia é mais do que tempo perdido. Cada mês de atraso num projeto solar representa toneladas de CO2 que continuam a ser emitidas. Representa euros que as famílias continuam a pagar na fatura da luz. Representa empregos que não são criados numa indústria que poderia ser um motor da nossa economia.

Enquanto isso, o mercado paralelo cresce. Instaladores informais, sem licenças nem seguros, oferecem preços mais baixos e prazos mais curtos. O risco é óbvio: instalações mal feitas, sem garantias, que podem colocar em perigo as famílias e a rede elétrica nacional. Mas quando o sistema oficial é tão lento e complexo, muitos optam pelo caminho mais fácil.

A solução não é simples, mas existe. A digitalização completa dos processos seria um primeiro passo. Um único portal onde se pudesse submeter todos os documentos, acompanhar o processo em tempo real, receber notificações automáticas. Países como a Dinamarca já o fizeram, com resultados espetaculares.

Outra medida urgente é a harmonização dos critérios entre municípios. Hoje, o que é aceite num concelho pode ser rejeitado no vizinho. Esta falta de uniformidade cria insegurança jurídica e desencoraja investimentos maiores.

Há também uma questão cultural. Muitos técnicos das autarquias ainda vêm os painéis solares como uma novidade, não como uma solução mainstream. A formação específica para estes profissionais é essencial para mudar mentalidades.

O mais irónico é que Portugal tem tudo para ser uma potência solar. Temos mais horas de sol do que a maioria dos países europeus, temos tecnologia, temos vontade popular. O que nos falta é eficiência administrativa.

Enquanto escrevo estas linhas, há milhares de portugueses à espera que um funcionário carimbe um papel para poderem produzir a sua própria energia limpa. Cada dia de espera é um dia em que continuamos dependentes do gás russo, do petróleo árabe, do carvão polaco. A nossa independência energética está presa numa gaveta qualquer, à espera de uma assinatura.

A revolução solar portuguesa não precisa de mais incentivos financeiros, nem de mais campanhas de sensibilização. Precisa de menos burocracia. Precisa de processos simples, rápidos, transparentes. Até lá, continuaremos a queimar combustíveis fósseis enquanto o sol brilha, inutilmente, sobre os nossos telhados.

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