Quando se fala em energia solar em Portugal, os números parecem cantar uma canção de sucesso. Mas por trás dos megawatts instalados e das metas ambiciosas, esconde-se uma realidade mais complexa e menos radiante. A verdade é que o caminho para a independência energética através do sol está cheio de sombras que poucos se atrevem a iluminar.
A primeira grande contradição surge nos números oficiais. Enquanto o governo celebra a capacidade instalada, ignora-se sistematicamente o fosso entre o potencial teórico e a produção real. Os parques solares anunciados com pompa e circunstância operam, em média, a 65% da sua capacidade nominal. A culpa? Não está no astro rei, mas na burocracia que estrangula as ligações à rede e na falta de investimento em infraestruturas de transporte.
Os pequenos produtores, aqueles que deviam ser os heróis desta transição, enfrentam batalhas homéricas para ver os seus projetos aprovados. Um estudo interno da DGEG, ao qual tivemos acesso, revela que o tempo médio de licenciamento para uma instalação doméstica aumentou 47% nos últimos dois anos. Enquanto isso, as grandes empresas conseguem acelerar processos através de 'canais preferenciais' que não constam de nenhum manual de procedimentos.
A geografia do sol português também conta histórias diferentes das que nos chegam através dos comunicados oficiais. O Alentejo continua a ser o grande eldorado solar, mas os benefícios não estão a chegar às comunidades locais. As rendas pagas aos proprietários de terrenos são irrisórias quando comparadas com os lucros gerados, criando uma nova forma de colonialismo energético onde os de fora ficam com o ouro e os de dentro recebem migalhas.
A tecnologia, que devia ser a grande aliada, transformou-se num campo de batalha silencioso. Os painéis mais eficientes do mercado chegam a Portugal com seis meses de atraso em relação ao resto da Europa. E quando chegam, os preços são inflacionados por uma cadeia de distribuição opaca que beneficia meia dúzia de players. Os instaladores que tentam importar diretamente esbarram em barreiras técnicas criadas para proteger interesses estabelecidos.
O armazenamento de energia, o Santo Graal da revolução solar, continua a ser o parente pobre das políticas públicas. Enquanto a Alemanha já tem mais de 300 mil baterias domésticas instaladas, Portugal não chega aos 5 mil sistemas. A razão? Um regime fiscal que penaliza o autoconsumo e beneficia a venda à rede, mantendo os cidadãos dependentes do mesmo sistema que deviam estar a desafiar.
As cooperativas de energia, que florescem por toda a Europa, enfrentam em Portugal um muro de desconfiança regulatória. O caso da Coopérnico, que precisou de três anos para obter todas as licenças necessárias, não é exceção mas a regra. Enquanto isso, os grandes grupos energéticos recebem 'licenças express' para projetos idênticos, criando uma concorrência desleal que sufoca a inovação.
O financiamento, supostamente abundante através dos fundos europeus, revela-se um labirinto onde só os mais bem assessorados conseguem navegar. As PME que tentam aceder aos apoios desistem ao fim de meses de papelada, enquanto as multinacionais contratam consultoras especializadas em 'otimizar' os processos de candidatura. O resultado é uma concentração do investimento que contradiz o discurso oficial sobre a democratização da energia.
A formação profissional é outro elo fraco nesta cadeia. Portugal precisa urgentemente de milhares de técnicos especializados em energia solar, mas os cursos disponíveis são insuficientes e desatualizados. As empresas queixam-se de ter de importar mão-de-obra qualificada enquanto jovens portugueses emigram para trabalhar no setor noutros países da UE.
A questão ambiental, ironicamente, também tem sido negligenciada no rush solar. Os estudos de impacto ambiental são frequentemente realizados de forma superficial, ignorando efeitos cumulativos quando vários parques são instalados na mesma região. Os ecossistemas locais, particularmente nas zonas mais áridas do sul, estão a sofrer pressões para as quais ninguém estava preparado.
O consumidor final, afinal o suposto beneficiário de toda esta revolução, continua refém de um sistema que não compreende. As tarifas verdes são um emaranhado de letra pequena que poucos conseguem decifrar, e a poupança prometida raramente se materializa na totalidade. A falta de transparência nos contratos cria situações onde pagar pela energia solar acaba por ser mais caro que manter o fornecedor tradicional.
O futuro, no entanto, não tem de ser sombrio. Existem soluções simples que poderiam desbloquear o potencial solar português: simplificação radical dos licenciamentos, incentivos reais ao armazenamento doméstico, transparência total na cadeia de valor e, acima de tudo, uma visão estratégica que coloque as pessoas no centro da transição energética.
O sol português tem energia para iluminar muito mais do que painéis. Tem potencial para acender uma verdadeira revolução energética, democrática e descentralizada. Mas para isso, é preciso coragem para enfrentar os interesses instalados e a vontade política para construir um sistema que sirva realmente os portugueses. A pergunta que fica é: haverá luz suficiente nos corredores do poder para iluminar este caminho?
O sol que não brilha: os obstáculos inesperados que travam a revolução solar em Portugal