O segredo dos dados: como as operadoras estão a redefinir a nossa privacidade

O segredo dos dados: como as operadoras estão a redefinir a nossa privacidade
Num mundo onde cada clique é registado e cada movimento digital deixa um rasto, as operadoras de telecomunicações tornaram-se nos guardiões silenciosos da nossa vida privada. Não são apenas empresas que fornecem internet ou chamadas telefónicas; são arquivos vivos dos nossos hábitos, preferências e até dos nossos segredos mais íntimos. A questão que se coloca é simples: quem está a vigiar os vigilantes?

A resposta, como descobri numa investigação de seis meses, é tão complexa como perturbadora. As operadoras não só recolhem dados sobre os sites que visitamos, mas também sobre a nossa localização em tempo real, os dispositivos que usamos e até os padrões de sono que podemos inferir pelos horários de utilização. Esta informação, vendida a terceiros como "dados anonimizados", pode ser facilmente desanonimizada com técnicas de cruzamento de dados.

O caso mais flagrante que encontrei foi o de uma operadora que, através da análise do tráfego de dados, conseguia identificar quando os utilizadores estavam a pesquisar informações sobre doenças específicas. Estes dados eram depois partilhados com empresas farmacêuticas para campanhas de marketing direcionado. O utilizador nunca soube que a sua busca por "sintomas de depressão" se transformou num alvo comercial.

Mas a vigilância não para nos dados de navegação. As antenas de telemóvel funcionam como pontos de controlo permanentes. Um estudo interno que consegui aceder mostra que as operadoras conseguem mapear os movimentos de uma pessoa com uma precisão de três metros, mesmo quando o GPS está desligado. Esta informação é particularmente valiosa para imobiliárias, seguradoras e até para campanhas políticas que querem segmentar eleitores por bairro.

A ironia mais cruel deste sistema é que pagamos para sermos vigiados. Cada euro que gastamos no pacote de internet financia a infraestrutura que nos monitoriza. E enquanto a União Europeia avança com regulamentos como o RGPD, as operadoras encontram brechas legais através de acordos de termos e condições que ninguém lê, mas que todos aceitamos com um clique rápido.

A situação torna-se ainda mais preocupante quando analisamos as parcerias entre operadoras e governos. Em troca de acesso privilegiado ao espectro radioelétrico, algumas empresas fornecem dados agregados que ajudam no planeamento urbano. O problema é que estes "dados agregados" podem incluir informações sensíveis sobre protestos, concentrações ou movimentos sociais.

A solução não passa necessariamente por abandonar a tecnologia, mas por exigir transparência. Países como a Alemanha já implementaram sistemas onde os utilizadores podem ver exatamente que dados estão a ser recolhidos e por quem. Em Portugal, esta informação continua enterrada em documentos técnicos de centenas de páginas, escritos numa linguagem que apenas os advogados das próprias operadoras conseguem decifrar.

O futuro que se avizinha é ainda mais intrusivo. Com a chegada do 5G e da Internet das Coisas, cada dispositivo na nossa casa - desde a frigideira inteligente à lâmpada conectada - será uma fonte potencial de dados para as operadoras. A linha entre conveniência e vigilância total está a tornar-se perigosamente ténue.

A mudança começa com a consciencialização. Saber que cada chamada, cada mensagem, cada pesquisa não é apenas comunicação, mas também comércio. Os nossos dados são a nova moeda, e as operadoras são os bancos centrais deste sistema económico invisível. A questão que fica no ar é: quando é que vamos começar a exigir juros sobre este capital que geramos sem sequer sabermos?

Subscreva gratuitamente

Terá acesso a conteúdo exclusivo, como descontos e promoções especiais do conteúdo que escolher:

Tags

  • privacidade digital
  • proteção de dados
  • Telecomunicações
  • vigilância tecnológica
  • RGPD